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Imagem recebida através de E-mail. Arquivo Pessoal |
Nós e Vós
Gibran Kahlil Gibran (1883-1931)
Nós somos os filhos da Tristeza, e vós,
os filhos da Alegria. Somos filhos da Tristeza,
e a Tristeza é a sombra de um Deus
que não vive nos corações do maus.
Somos espíritos tristes, e a Tristeza é
grande demais para caber em corações pequenos.
Quando rides, nós choramos e lamentamos;
e aquele que é crestado e purificado
pelas suas próprias lágrimas
permanecerá puro para sempre.
Vós não compreendeis, nós vos oferecemos
nossa simpatia. Remais, rio-abaixo,
na corrente do Rio da Vida,
e não nos vedes; mas sentamo-nos,
de parte, ao lado, observando-vos e ouvindo
vossas vozes estranhas.
Não compreendeis nosso choro,
porque o clamor dos dias enche
vossos ouvidos,
fechados com a cera
de vossos anos de indiferença à Vontade.
Mas ouvimos vossos cantos,
pois o sussurro da noite abriu
o recôndito de nossos corações.
Nós vos vemos sob a ponta do dedo indicador
da luz,
mas não podeis ver,
porque nos demoramos
nas trevas que trazem luz.
Somos os filhos da Tristeza: os poetas,
os profetas e os músicos.
Tecemos túnicas para as deusas
com fios de nossos corações,
e enchemos as mãos dos Anjos
com sementes do íntimo de nossas vidas
Sois os filhos da busca da alegria
terrena. Pondes os corações nas mãos
da Fatuidade, pois o toque das mãos
da Fatuidade é leve e convidativo.
Residis na casa da Ignorância,
porque ela não tem espelho
em que se mirem as almas,
Suspiramos, e de nossos suspiros
desperta o cochilo das flores,
e sussurro das folhas e o murmúrio dos regatos...
Quando nos ridicularizais, vossos motejos
se misturam
ao despedaçamento de caveiras,
ao arrastar de algemas
e aos lamentos do Abismo.
Quando choramos, nossas lágrimas caem
no coração da Vida, como caem gotas de orvalho
dos olhos da Noite no coração da Aurora.
Quando rides, vosso riso zombeteiro
se derrama como peçonha de uma víbora
numa ferida viva.
Nós choramos, simpatizando
com o miserável viandante
e a viúva aflita;
mas vós vos regozijais,
sorrindo,
à vista do resplendente ouro.
Choramos, pois ouvimos
os queixumes do pobre
e as lamentações dos oprimidos;
vós, entretanto, rides, pois nada ouvis, senão
o som álacre das taças de capitoso vinho.
Choramos, pois nossos espíritos se acham,
no momento, longe de Deus;
mas rides, pois vossos corpos
apegam-se
displicentemente,
à terra.
* * *
Somos os filhos da Tristeza, vós sois
os filhos da Alegria.
Comparemos, diante do sol, o resultado
de nossa Tristeza.
com o que vos traz vossa Alegria.
Construístes as Pirâmides
sobre os corações de escravos.
Hoje, porém, as Pirâmides
se erguem sobre a areia, perpetuando
a nossa imortalidade
e a vossa transitoriedade.
Construístes Babilônia
sobre os ossos dos oprimidos
e erguestes Ninive
sobre os túmulos dos infelizes.
Hoje Babilônia não passa das pegadas
de camelos sobre a areia solta
do deserto, e a sua história é repetida
aos pósteros que nos bendizem
e vos amaldiçoam.
Nós esculpimos Istar
de um bloco sólido de mármore
e a fizermos tremer em sua solidez
e falar em sua mudez!
Compusemos e executamos,
nas cordas de nossos instrumentos,
o suave cântico de Nahawand,
fazendo com que o seu amado espírito
pairasse, nos céus, perto de nós.
Louvamos o Ser Supremo
com palavras que proferimos
e atos que praticamos.
Nossas palavras se divinizaram
e os nossos atos valem
o amor
dos próprios Anjos.
Buscais o Prazer, cujas garras afiadas
dilaceraram milhares de mártires nas arenas
de Roma e Antioquia.
Mas nós buscamos o silêncio,
cujas mãos hábeis teceram
a Ilíada, o Livro de Jó
e as Lamentações de Jeremias.
Vós vos deitastes com a Sensualidade,
cujo desregramento varreu milhares
de almas de mulher
e as enterrou na cova
da vergonha e do horror.
Nós preferimos a Solidão,
a cuja sombra nasceram, vivas,
as belezas de Hamlet e Dante Alighieri.
Vós buscastes os favores da Ambição,
e as afiadas espadas da Ambição
derramaram mil rios de sangue.
Nós procuramos a companhia da Verdade,
e as mãos da Verdade proporcionaram
Sabedoria do Grande Coração do Círculo
da Luz.
Somos os filhos da Tristeza, vós sois
os filhos da Alegria. E entre a nossa Tristeza
e a vossa Alegria há um caminho estreito
e áspero
sobre o qual não passam
vossos corcéis fogosos
nem vossas magníficas carruagens.
Temos pena de vossa pequenez,
e odiais nossa grandeza.
E entre a nossa piedade e o vosso ódio
o Tempo pára, perplexo.
Vimos a vós, como amigos,
mas vós nos atacais, como inimigos.
E entre a nossa amizade e a vossa inimizade
há uma ravina que corre,
de lágrimas e sangue.
Construímos palácios para vós,
e cavais túmulos para nós.
E entre a beleza do palácio
e a obscuridão do túmulo
caminha a Humanidade
como uma sentinela de armas de ferro.
Sobre os vossos caminhos espalhamos rosas,
e vós cobris de espinhos as nossas camas.
E entre as rosas e os espinhos
a Verdade cochila, caprichosa.
Desde o princípio do mundo tendes lutado
contra o nosso poder cordato
com a vossa fraqueza rude
e quando, acaso, triunfais por um momento,
coaxais e gritais, tanto, satisfeitos,
como as rãs no brejo.
E quando vos vencemos e dominamos
por uma Idade,
permanecemos como Gigantes silenciosos.
Crucificastes a jesus e depois ficastes,
embaixo, zombando d'Ele e blasfemando.
Mas, afinal, ele desceu da cruz
e sobreviveu a gerações,
e andou entre vós, como um herói,
enchendo o Universo com a Sua Glória
e Sua beleza.
Envenenastes Sócrates,
apedrejastes Paulo,
destruístes Ali Talib
e assassinastes Madhat Pashá,
mas aqueles imortais ainda estão conosco
e para sempre voltados para a Eternidade.
Mas vós viveis na memória dos homens
como cadáveres sobre a terra;
nem achareis u'a mão amiga
que vos sepulte na obscuridade
do não-ser e do esquecimento
que na terra procurastes.
Somos os filhos da Tristeza, e a Tristeza
é uma nuvem rica,
chuva de sabedoria e de Verdade
sobre as multidões.
Vós sois os filhos da Alegria
e, por mais alto que se eleve
vossa Alegria,
ela deve, pela Lei de Deus, ser destruída,
diante dos ventos dos céus
e dispersada em nada,
pois ela nada mais é
do que uma coluna de fumaça
fina, sinuosa e trêmula...