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Crônica de Natal
Aquele Natal seria diferente. Ela o pressentia no vento quente de começo de dezembro, nas nuvens carregadas que acinzentavam o céu sempre azul de sua cidade, na onda de esperança que animava o ambiente político, nos saraus literários antes inexistentes, nos versos e prosa de um novo livro.
Sabia que correria, como todos, em busca de presentes de última hora. Que pensaria nos amigos, secretos ou não. Que mandaria cartões, agora via internet, escreveria a mensagem para ser lida em família durante a ceia. Que compraria luzinhas para enfeitar a fachada de sua casa. Que ajudaria alguma entidade assistencial.
Mas por que aquela sensação de que algo inusitado estava para acontecer? Aquela angústia fina, que doía no peito, tirava-lhe o ar, dando-lhe sensação de desmaio?
Buscava a resposta no vento, nas compras, nos cartões, na mensagem, nas luzinhas, nos amigos. Mas só via o reflexo de sua própria busca.
A cada vez que ouvia “Noite Feliz” emocionava-se mais do que nos anos anteriores, a cada vez que via uma árvore de Natal, encantava-se mais do que de costume. Aquele Natal prometia.
Chegaram os parentes, as compras foram feitas, as luzinhas colocadas e meticulosamente testadas, os garotos do albergue devidamente presenteados. Tudo parecia correr como sempre corria.
Mas, na véspera da véspera, quando ainda sentia sobressaltos, abriu uma correspondência, esperada para janeiro. Abriu sozinha, vibrou sozinha. Sua filha, filha única, passara no vestibular, justamente na faculdade com que tanto sonhara. Ela não conteve o grito de alegria e, qual animal ferido, gemeu sozinha.
Agora entendia os sobressaltos. Este Natal estava sinalizando uma nova fase em sua vida. Este Natal era a metáfora de outro nascimento: o de sua filha, em uma nova cidade, em uma nova condição.
Apertou os lábios, foi até o quarto acordá-la, abraçou-a como nunca, sentindo um misto de orgulho e pena de si mesma. A filha nascia, ela ficava; a filha partia, ela continuava. Em um minuto, vieram-lhe à mente cenas da infância (breve infância!) daquela que hoje é mulher. Cenas do parto, de noites insones, de festas de aniversário, de teatros encenados ao ar livre, passeios na praia e em parques, namoricos precoces, primeira comunhão, aulas de perseverança... Tudo passou vertiginosamente como num filme em preto e branco. Tudo era passado.
E, na véspera da véspera, entendeu porque o seu Natal seria diferente: pela primeira vez haveria, em sua casa, um parto à moda antiga. Não do menino Deus, mas da menina-mulher que também tinha uma missão a cumprir. E para que isso pudesse se concretizar, fazia-se necessário o corte do cordão umbilical. Mesmo que sangrasse, mesmo que doesse.
Enfim, a noite de Natal, os presentes sob a árvore, as luzinhas acesas. Ela estava mais bonita, com uma beleza singela da mãe que aprendeu, como Maria, que o filho é para o mundo. Colocou mais emoção nas palavras da mensagem que leu, mais alma na oração, mais calor em todos os abraços. Sim. Aquele Natal foi diferente, pois ela pariu, como a virgem, um ser humano que se abria para o mundo escancarado. Mas, também como a Virgem, naquele Natal, ela pôde ver a estrela mais reluzente, sentir a brisa mais suave, ouvir a mais doce melodia da Vida que desabrocha da dor.
[Vera Márcia Paráboli Milanesi in Prosas e Versos de Natal]