Foi a primeira mulher a ser membro da
Academia Sueca, em 1914.
"A mulher do salteador que morava numa caverna no alto da floresta de Goige desceu certo dia à planície, para mendigar. O marido vivia foragido e não tinha coragem de sair da floresta. Pouco conseguia em suas emboscadas aos poucos viajantes que se aventuravam a passar por aquela região. Não era freqüente, naquele tempo, surgirem viajantes no norte da Escânia, e o marido quase nada conseguia. Por esse motivo, a mulher entrava em ação.
Levava consigo os cincos filhos, vestidos de peles e com sapatos de cortiças, cada qual com um saco de seu tamanho pendurado às costas. Quando a mulher do salteador entrava numa granja, ninguém se recusava a atender seus pedidos porque, se fosse mal atendida, não hesitaria em voltar no meio da noite para pôr fogo à casa.
Ela e os filhos eram tão temidos quanto um bando de lobos e não faltava quem tivesse vontade de espetar-lhes a barriga com um chuço. Mas refreavam tal vontade, lembrando-se do marido que ficara na floresta e não hesitaria em vingar qualquer ofensa feita á mulher ou aos filhos.
A mulher do salteador, com seus gritos de mendiga, chegou uma tarde a Oved, naquele tempo um lindo convento. Bateu e pediu esmola. O porteiro deu-lhe seis pães. Um para ela e um para cada filho. Enquanto a mãe recebia a esmola pelo postigo da porta principal, um dos meninos fez uma descoberta e veio puxá-la pela saia, para lhe mostrar.
A mulher acompanhou o filho e encontrou uma porta entreaberta num dos muros laterais do convento. Chegando junto à porta, empurrou-a e entrou, sem pedir licença, como era seu costume.
O abade Hans, prior do convento, profundo conhecedor de agricultura, havia feito, atrás daqueles muros, um jardim muito bem cuidado.
Para lá entrou a mulher do salteador, parando logo na entrada, tão espantada ficou. O verão estava no auge e as flores amontoavam-se em tal quantidade pelo jardim do abade Hans que o olhar não conseguia distinguir senão uma massa flamejante e colorida, onde predominavam o azul, o vermelho e o amarelo.
Um sorriso de satisfação iluminou o rosto da mendiga, enquanto caminhava pelo meio dos canteiros.
Um irmão leigo estava arrancando ervas daninhas. Deixara a porta entreaberta e por ali ia atirando as folhas arrancadas para o monte de lixo. Quando viu a mulher do salteador entrar com as cinco crianças, foi ao encontro dela ordenando-lhe que saísse. A mendiga, porém, continuou a caminhar, olhando para todos os lados, como se não houvesse notado a presença do irmão leigo. Contemplava as açucenas firmes e brancas desabrochando num dos canteiros, a hera de folhas largas enroscando-se pelo muro do convento e admirava-se ao ver tanta beleza.
O irmão, pensando que ela não houvesse entendido suas palavras, quis segura-la pelo braço, para obriga-la a sair. A mulher, compreendendo a intenção do jardineiro, olhou-o com um olhar tão feroz, que obrigou o pobre homem a recuar. A mendiga caminhava, até então, curvada ao peso do alforje. Quando olhou para o leigo, porém, empertigou-se dando a impressão de ser mais alta do que antes.
- Sou a mulher do salteador de Goinge. Põe a mão em mim, se tens coragem!
Depois de tais palavras, adquiriu um ar de segurança, uma certeza de não ser incomodada, como se fosse a própria rainha da Dinamarca.
O irmão, sabendo de quem se tratava, não teve coragem de tocá-la. Limitou-se a dizer com voz mansa:
- Isto aqui, como você não deve ignorar, boa mulher, um convento de monges e nenhuma pessoa da região têm o direito de transpor estes muros. Se você não for embora os monges vão ficar furiosos comigo, por ter esquecido de fechar a porta e serão capazes de me expulsar do jardim e até do convento.
As súplicas foram inúteis. A mulher do salteador continuou a caminhar em direção ao canteiro das rosas, contemplando o tufo de flores azuladas e a madressilva de veios alanjados.
A solução era ir buscar auxilio no convento, pensou o irmão leigo. Voltou com dois monges robustos e a mulher do marginal viu que as coisas estavam ficando sérias. Plantou-se, de pés afastados, e começou, em altos brados suas ameaças de vingança contra o convento, se não a deixassem ficar no jardim o tempo que tivesse vontade.
Os monges, julgando nada terem a recear, queriam obriga-la a sair, mas a mulher, soltando gritos terríveis, atirou-se em cima deles de unhas e dentes, imitada pelas crianças. Não foi preciso muito para os três homens sentirem que ela era a mais forte e não tiveram outro remédio senão voltar ao convento em busca de reforço.
Encontraram-se com o abade Hans na alameda principal do convento. O superior vinha saber a causa daquela gritaria no jardim.
- A mulher do salteador da floresta de Goinge entrou no convento – explicou o irmão leigo. – Como não há meios de obriga-la a sair, íamos em busca de socorro.
O abade repreendeu-os por terem usado de violência e não os deixou ir chamar mais ninguém. Mandou os dois monges retornarem às suas ocupações e, embora sendo um velhinho de aparência frágil, levou consigo para o jardim apenas o irmão leigo.
Ficou muito admirado ao ver a mulher passeando pelo jardim, olhando os canteiros floridos, cada qual com uma qualidade diferente de flor. Aquela mulher não devia estar acostumada a ver jardins floridos e no entanto olhava para todos os lados como uma pessoa conhecedora do assunto. Entre ela e as flores parecia haver uma velha amizade. Sorria para umas, balançava a cabeça para outras...
O abade amava seu jardim tanto quanto podia amar algo terreno e transitório. Por mais estranha e perigosa que a mendiga parecesse, era obrigado a admira-la, por ter lutado com os três monges só para poder observar as flores.
- Gosta de flores? – perguntou—lhe o abade aproximando-se.
A mulher voltou-se bruscamente para o abade, pois só esperava ataques e ciladas. Vendo porém o cabelo branco e o corpo curvado do velhinho, disse com ar mais sereno:
- Quando entrei tive a impressão de nunca ter visto um jardim igual a este. Mas reparando melhor, nem se pode comparar a outro que conheço.
O abade Hans não esperava aquela resposta e, ao ouvir a mulher do salteador afirmar ter visto um paraíso mais belo que o dele, sentiu um leve rubor colorir-lhe as faces enrugadas.
- Este jardim foi feito pelo próprio abade Hans, com perseverança e carinho – explicou o irmão leigo, querendo pôr a mulher em seu devido lugar. – Reuniu aqui plantas vindas das redondezas do convento e dos lugares mais longínquos da terra. Não há jardim mais rico em toda a Escânia. Você mora no meio de uma floresta selvagem e não acho bonito vir depreciar a obra do abade.
- Não estou querendo bancar o juiz diante de ninguém – disse a mulher. – Mas se vissem o paraíso de que estou falando, arrancariam todas estas flores e jogariam no lixo!
- Você fala assim para nos enfurecer, bem sei – respondeu o ajudante do jardineiro, quase tão orgulhoso do jardim, quanto o abade Hans. – Gostaria de ver que belo jardim você pode ter, entre zimbos e os pinheiros da floresta de Goinge! – exclamou o irmão leigo soltando uma risada. – Eu seria capaz de jurar, pela salvação de minha alma, como você nunca entrou num jardim!
- Talvez eu nunca tenha posto os pés num jardim – disse a mulher – mas vocês monges, homens santos, deveriam saber que, na noite de Natal, a floresta de Goinge transforma-se num verdadeiro paraíso para festejar a hora do nascimento de Nosso Salvador. Quem mora na floresta vê isso todos os anos. Vi flores tão maravilhosas naquele jardim, que não tive coragem de levantar a mão para colhe-las!
O irmão leigo queria prosseguir na discussão mas foi obrigado a calar a boca, diante de um sinal feito pelo abade Hans.
- Realmente, sempre ouvi dizer que a floresta cobre-se de gala, na noite de Natal. Inúmeras vezes tenho tido vontade de presenciar esse milagre, mas nunca me foi possível.
Pediu à mulher do salteador para hospedá-lo na caverna, na noite de Natal. Iria sozinho, a cavalo, e prometia não revelar o caminho a ninguém. Um dos meninos poderia vir busca-lo e servir de guia. Rogou-lhe aquela graça, afirmando que saberia recompensa-los da melhor maneira possível.
A mulher recusou, a princípio, pensando nos perigos que o marido poderia correr com a ida do abade à caverna. Mas o desejo de mostrar ao monge um jardim mais bonito que o do convento, suplantou o receio do perigo e acabou concordando.
- O senhor vai sozinho ou com um companheiro. Mais ninguém. Promete não preparar nenhuma cilada, nenhum laço para meu marido? Palavra de homem santo?
O abade prometeu e a mulher foi embora.
- Não diga uma palavra a respeito da combinação feita, ouviu bem, irmão? – recomendou o abade ao leigo. – Se os outros monges souberem, são capazes de não me deixar ir à caverna. Vão ficar assustados porque já sou muito velho. Por minha parte também não falarei a ninguém.
O arcebispo Absalão, de Lund, passou tempos depois por Oved e dormiu uma noite no convento. Ao mostrar o jardim a seu hóspede, o abade Hans lembrou-se da visita da mulher do salteador e o irmão leigo, trabalhando ali perto, ouviu-o contar a história do bandido que vivia escondido na floresta, há muitos anos e pedir ao arcebispo uma carta de absolvição para o criminoso poder recomeçar uma vida honesta entre os homens de bem.
- Os filhos estão crescendo e, dentro em pouco, acabarão se tornando salteadores como o pai.
- Não podemos deixar os salteadores das montanhas descerem à planície e se misturarem aos homens honestos, abade – respondeu o arcebispo Absalão. – Será melhor para todos se ele continuar onde está.
O abade Hans, exaltado, contou ao arcebispo a história da floresta de Goinge que se enfeitava todos os anos, para comemorar o Natal.
- Se aquele bandido não é tão miserável para Deus lhe mostrar seu esplendor, também não deve ser indigno da clemência dos homens.
- Só posso prometer uma coisa – disse o arcebispo sorrido, pois sabia como responder ao abade Hans, - Quando o senhor me trouxer uma flor do jardim de Natal da floresta de Goinge, eu lhe darei a carta de absolvição para quantos bandidos quiser.
O irmão leigo compreendeu que o arcebispo também não acreditava na história contada pela mulher do ladrão. O abade, porém, pensava diferente. Agradeceu a promessa do arcebispo Absalão, prometendo mandar-lhe, sem falta. A flor reclamada.
No Natal seguinte, em lugar de sentar-se no refeitório com os outros monges, o abade Hans pôs-se a caminho da floresta de Goinge, para realizar seu sonho. Foi a cavalo, acompanhado apenas pelo irmão leigo. Um dos filhos do salteador veio buscá-lo à porta do convento de Oved e foi andando na frente, para indicar o caminho.
O abade sentia-se feliz ao realizar aquela viagem tão desejada. Para o irmão leigo, porém, a coisa era bem diferente. Gostava muito do abade Hans e não permitiria que outra pessoa o acompanhasse e velasse por sua segurança. Acompanhava o abade mas não acreditava que conseguisse ver o tal jardim de Natal. Aquela história, pensava ele, devia ser um laço armado com muita astúcia pela mulher, para o abade cair nas mãos do bandido.
Seguindo pela floresta, em direção ao norte, o abade ia vendo, por onde passava, os preparativos para as festas de Natal. O fogo já estava aceso em quase todas as granjas, para aquecer o banho da tarde. Pão e carne eram levados em grande quantidade, das despensas para as mesas e grandes feixes de palha vinham dos celeiros para forrar o assoalho.
Passando pelas igrejinhas campestres, podia ver os curas e os sacristãos estendendo as mais belas tapeçarias que possuíam. Chegando ao caminho do convento de Bosjo, viu os pobres das redondezas trazendo enormes pães e longas velas distribuídas pelos monges.
Diante de tantos preparativos, sua pressa aumentou. Só pensava na festa a sua espera, festa superior a qualquer uma mais importante que os homens pudessem oferecer.
O irmão leigo lamentava-se e gemia ao ver todas as granjas preparadas para celebrar o Natal. À medida que caminhavam, sua inquietação ia aumentando e não parava de insistir com o abade Hans para voltar, em lugar de ir cair, de propósito, nas mãos dos bandidos.
Mas o abade, sem dar importância às lamentações do irmão leigo, prosseguia sua caminhada. Deixaram a planície para trás e chegaram aos pontos mais afastados da floresta. O caminho, pior a cada passo, já não passava de uma picada cheia de pedregulhos e de agulhas de pinheiro, sem pontes nem pinguelas para ajudar os viajantes a atravessarem os riachos. Quanto mais avançavam, mais intenso se tornava o frio, e no fim de algum tempo chegaram a um ponto onde o chão estava coberto por um tapete branco de neve.
A viagem foi longa e difícil. Seguiram por atalhos ásperos e escorregadios, atravessaram charnecas e pântanos, pularam por cima de espinheiros e troncos de árvores derrubados pelo vento. O dia já começava a declinar quando o menino os conduziu a um prado cercado de árvores altas e de galhos nus e de pinheiros cobertos de folhas. Numa das extremidades da clareira erguia-se um rochedo e nele, uma porta de tábuas grossas e resistentes.
Compreendendo terem chegado, o abade desmontou. O menino abriu a pesada porta e ele pôde ver o interior de uma caverna miserável aberta no próprio rochedo, cujos flancos nus estavam a descoberto. A mulher do salteador, estava sentada no meio da caverna, junto de uma fogueira, enquanto o marido dormia numa das camas de musgo e palha, junto à parede, gritou sem se levantar:
- Entrem e tragam os cavalos também, para abrigá-los do frio.
O abade entrou e o irmão leigo, ousadamente, o seguiu. A casa era pobre e vazia não demonstrava o menor preparativo para festejar o Natal. A mulher não havia fermentado cerveja, nem amassara o pão. Não havia, sequer, limpado a casa. Os filhos estavam pelo chão, ao redor de um enorme caldeirão e nada havia ali de convidativo.
- Sente-se aí perto do fogo – disse a mulher do bandido, autoritária e desembaraçada, como se fosse a esposa de um rico camponês. – E se trouxe a ceia, pode comer. Não vai querer provar a nossa comida, não é mesmo? Se estiverem cansados, deitem-se numa das camas. Podem dormir sem susto. Vou ficar de vigília aqui perto do fogo e prometo acorda-los para ver o milagre.
O abade, obedecendo, pegou seu saco de provisões mas quase não pôde comer, de tão fatigado. Mal se deitou, caiu no sono.
O irmão leigo não teve coragem de dormir. Achou melhor ficar de olho no salteador, para que não matasse o abade. Mas o sono o foi vencendo pouco a pouco e acabou adormecendo. Quando acordou, o abade estava sentado junto ao fogo conversando com a mulher do bandido e com o próprio bandido. Era alto, magro, de ar rude e melancólico e estava de costas para o abade Hans que falava nos preparativos de Natal entrevistos durante a viagem. Fazia a mulher do salteador recordar as festas e danças de Natal, em que tomara parte na mocidade, quando ainda vivia entre os homens de bem.
- Tenho pena de seus filhos – prosseguiu o abade, - Nunca poderão correr mascarados pelas ruas da aldeia, nem brincar na palha do Natal...
A mulher, no começo dava respostas breves e secas. Aos poucos, porém, foi ficando mais comunicativa e acabou ouvindo com mais atenção.
- Monge perverso – gritou o salteador dando um salto e levantando o punho fechado para o abade. – Veio aqui para me tirar a mulher e os filhos, com sua lábia? Não sabe que estou proibido de descer à planície?
- Tenho feito tudo para conseguir do arcebispo sua carta de absolvição – respondeu o abade.
Ao ouvir tais palavras, o casal desatou a rir. Um salteador de floresta não podia esperar a menor graça do arcebispo Absalão, todos sabiam muito bem!
- Pois bem. Prometo não tornar a roubar, nem mesmo o valor de um pato, se receber a carta de perdão.
O irmão leigo não achou direito os bandidos rirem daquele modo do abade Hans. O abade, porém, parecia muito satisfeito. Nunca o vira tão sincero e meigo, entre os monges de Oved, como agora, ente aquele malfeitores selvagens.
- O senhor ficou falando, falando e quase nos fez esquecer a floresta – disse a mulher levantando-se. – Já podemos ouvir daqui os sinos de Natal!
Mal ela acabou de falar, levantaram-se todos e saíram. Na floresta a noite estava escura e o inverno tão frio como nunca. O repicar dos sinos das aldeias varava as distâncias trazido pelo vento.
- Como poderá o repicar dos sinos despertar a floresta morta? – pensava o abade Hans ao ver aquelas sombras hibernais. A transformação da floresta devia ser uma tarefa muito mais difícil do que imaginara.
Mal os sinos começaram a repicar, porém uma luz atravessou a floresta de um lado a outro. Novamente as trevas e outro raio de luz. A luz parecia querer lutar com o nevoeiro, para transformar a noite em aurora.
O abade viu a neve desaparecer, como um tapete que se enrola, e a terra, no mesmo instante, começou a reverdecer. Os fetos levantaram seus brotos enroscados como báculos de bispos e, em poucos segundos, um manto verde claro cobriu o tojo da colina e a mirta dos charcos. Tufos de musgo cresceram num abrir e fechar de olhos e as flores da primavera abriram-se em botões vigorosos, já estriados de cor.
- Não é possível! – exclamou o abade ao ver os primeiros sinais do despertar da floresta, sentindo o coração bater aceleradamente. – Na minha idade, ser-me-á dado o privilégio de presenciar tal milagre? – e seus olhos encheram-se de lágrimas.
As trevas eram, por vezes, tão fortes, que o abade receava vê-las vencer a luz. Logo nova onda luminosa irrompia, trazendo consigo o murmurar dos regatos e o estrondejar das cascatas desencadeadas. As folhas das árvores brotavam instantaneamente, como se um bando de borboletas verdes houvessem pousado nos galhos. Os pica-paus começaram a malhar os trancos, fazendo saltar lascas de madeira. Um bando de estorninhos, voando para o norte, pousou na copa de uma árvore florida, para descansar. Eram muito bonitos, com as extremidades da penas de um escarlate brilhante, cintilando a cada movimento, com aparência de pedras preciosas.
As trevas tornaram a invadir a floresta e nova onda de luz apareceu. Uma brisa suave soprava por todos os lados, semeando grãozinhos trazidos dos países do sul. Grãozinhos trazidos pelos pássaros, pelos navios ou pelos ventos.
Não tendo conseguido germinar em outros lugares, mal tocavam o solo da floresta criavam raízes e enfeitavam-se de rebentos.
Outra onda de luz fez florir as trepadeiras. Os patos selvagens gritavam pelo espaço, os tendilhões começavam a construir seus ninhos e os filhotes dos esquilos saltitavam, brincando no meio da folhagem.
Os acontecimentos sucediam-se com tal rapidez que o abade Hans já não conseguia aprender toda a grandeza do milagre, apesar de ser todo ouvidos e olhos.
A onda seguinte trouce o cheiro das terras recém aradas. As andorinhas, ao longe, chamavam as vacas e o tintilar das sinetas dos carneiros ecoava com bastante nitidez pelas colinas.
Os pinheiros e abetos, de pomos vermelhos, surgiram em tal profusão que pareciam recobertos por uma capa de púrpura. As bagas de zimbro mudavam de cor a cada segundo. O chão cobria-se com um tapete branco, azul e amarelo, formando pelas florzinhas rasteiras.
O abade curvou-se para colher uma flor de morangueiro e, enquanto se levantava, o fruto amadureceu em sua mão.
Uma raposa saiu da toca com uma ninhada de filhotes de patas pretas, aproximou-se e roçou a saia da mulher do salteador. A mulher abaixou-se e elogiu-lhe os filhotes.
Um mocho ia iniciar sua caçada noturna mas, voltou depressa para sua toca, ofuscado pela luz.
O cuco cantava alegremente, enquanto a fêmea, com o ovo no bico, procurava, matreria, o ninho dos outros pássaros.
Os filhos do salteador gritavam de alegria, enchendo a boca de bagas do tamanho de pinhas que pendiam dos arbustos. Um dos meninos brincava com a ninhada de lebres, outro apostava corrida com um bando de galinhas saídas do ninho sem esperar as asas crescerem e um terceiro pegando uma víbora, enrolova-a nos braços e no pescoço.
O salteador, entrando pelo charco, para comer morangos silvestres, encontrou-se com um enorme animal negro. Quebrou um galho de salgueiro e bateu-lhe no focinho
- Saia daí! Esta moita é só minha!
O urso, esquivando-se do golpe, afastou-se docilmente.
As ondas de luz e de calor sucediam-se sem cessar. Ouvia-se o chafurdar dos marrecos e o pólen dourado de centeiro flutuava pelo ar. Borboletas tão grandes que pareciam lírios voadores, vinham chegando de todos os lados e a colméia instalada no oco do carvalho, de tão cheia, deixava escorrer o mel pelo tronco da árvore. As flores cujas sementes tinham vindo de terras distantes, começavam a abrir suas corolas. Rosas magníficas subiam pelo rochedo, ao lado dos espinheiros. Flores do tamanho de rostos humanos desabrochavam por toda a clareira.
O abade não se esquecera da flor prometida ao arcebispo Absalão mas hesitava em colhê-la. As flores sucediam-se umas às outras, cada qual mais bela e ele queria colher a mais bela de todas.
O ar, de tão luminoso, chegava a cintilar. Toda a alegria, todo o esplendor, toda a felicidade do estio sorriam em torno do abade Hans.
- Que beleza maior poderá trazer a próxima onda de luz? – perguntava o abade, achando impossível ver espetáculo ainda mais deslumbrante.
A luz, porém, continuava a fluir, parecendo trazer algo de uma distância infinita, e o abade sentia-se envolvido por uma atmosfera sobrenatural. Tendo já provado todas as alegrias terrenas, esperava, trêmulo de emoção, que as alegrias celestes lhe fossem reveladas.
Notou, de repente, tudo retornar à calma. Os pássaros emudeceram, as raposinhas não brincavam mais e as flores tinham parado de crescer. A felicidade que se aproximava era de tal grandeza, que o coração parecia querer parar, os olhos derramavam lágrimas inconscientes e a alma aspirava a voar para a eternidade. Sons de harpa e cantos sobrenaturais, semelhantes a um doce murmúrio, pareciam vir de muito longe.
O abade caiu de mãos postas, com o rosto transfigurado de beatitude. Nunca havia ousado esperar, ainda em vida, gozar a alegria celestial de ouvir os próprios anjos cantando hinos de Natal.
- O milagre revelado a esses criminosos não pode ser verdadeiro – pensava o irmão leigo, em cujo cérebro bailavam pensamentos confusos. – Não pode ser obra de Deus e sim de algum espírito do mal. Este milagre deve ser um artifício maléfico do demônio. O poder do inimigo nos enfeitiça e nos obriga a ver o que não existe.
O som das harpas e o canto melodioso dos anjos escoava na distância mas o irmão leigo estava convencido da aproximação de espíritos infernais.
- Querem tentar-nos e seduzir-nos – suspirou. – Não conseguiremos nos salvar. Seremos enfeitiçados e vendidos ao inferno.
O coro dos anjos estava tão perto que o abade tinha a impressão de já estar vendo aparições radiosas por entre as árvores.
O irmão leigo via as mesmas coisas mas só se preocupava com a blasfêmia daquele sortilégio diabólico, feio na própria noite do nascimento do Salvador. O diabo devia ter escolhido aquele momento, sem dúvida, para encantar os mortais com mais facilidade.
Os pássaros esvoaçavam em volta do abade Hans que pôde até segurar alguns para acariciar. O irmão leigo, ao contrário, assustava todos os animais. Nenhum pássaro pousou em seu ombro e nenhuma cobra brincou a seus pés. Um pombo malhado, vendo os anjos se aproximarem, tomou coragem e foi pousar no ombro do irmão leigo, acariciando-lhe o rosto com o bico. O irmão, julgando estar com o próprio inimigo pousado no ombro, deu-lhe um tapa e gritou bem alto:
- Volte para o inferno, de onde saiu!
Os anjos já estavam muito perto e o abade, sentindo o ruído de suas asas, inclinava-se até o chão, para saudá-los. Ao som das palavras do irmão leigo, porém, o canto cessou como por encanto. Os visitantes celestiais tornaram a fugir e com eles as ondas de luz e de calor, como se fugissem das trevas de um coração humano.
A noite, como um espesso vê, tornou a cobrir a terra. O frio reapareceu, as plantas encolheram-se pelo chão adentro, os animais esconderam-se, o ruído das cascatas cessou por completo e as folhas das árvores caíram como gotas de chuva.
- Oh! Não poderei sobreviver a este golpe! – exclamou o abade sentindo o coração, pouco antes dilatado de beatitude, fechar-se numa dor invencível. – Os anjos do céu chegaram tão perto e serem afugentados! Quererem cantar-me hinos de Natal e serem repelidos!
Lembrou-se da flor que prometera ao arcebispo Absalão e curvou-se, tateando por entre o musgo, para ver se conseguia colher alguma, no último instante, mas a terra esfriava-se sob seus dedos, e a neve voltava a cobrir tudo com seu manto branco e gelado. Sentiu o coração partir-se com uma dor ainda mais forte e não conseguiu levantar-se do chão, onde ficou estendido.
Voltando para a caverna, às apalpadelas, pelo meio das trevas, a família do salteador e o irmão leigo deram por falta do abade Hans. Apanharam umas tochas acesas e saíram para procurá-lo. Encontraram-no morto, caído no tapete de neve.
O irmão desatou a chorar e a gemer, compreendendo ter sido a causa da morte do abade Hans, ao lhe arrebatar a taça de alegria tão ardentemente desejada.
Quando iam depositar o corpo do abade Hans no esquife, em Oved, para onde fora transportado, notaram qualquer coisa fechada em sua mão. Um objeto, talvez, apanhado em seu último instante de vida. Conseguiram, com muita dificuldade, abrir a mão e encontraram umas batatinhas miúdas, recém-arrancadas e cobertas de musgo. Ao ver as batatas, o irmão leigo tomou-as e foi para o jardinzinho do convento, onde as plantou.
Cuidou delas o ano todo, na esperança de ver brotar uma flor. em vão esperou a primavera, o verão e o outono. Com a chegada do inverno, que mata todas as flores, e todas as folhas, deixou de cuidar da plantinha.
Nas vésperas do Natal, sentindo muitas saudades do abade Hans. Desceu ao jardim para pensar nele. Ao passar pelo local onde plantara as batatinhas, viu umas hastes verdes sustentando lindas flores de pétalas brancas.
Chamou todos os monges de Oved e mostrou-lhes a planta que florescera na véspera do Natal, quando todas as outras pareciam mortas. Compreendeu que aquela flor fôra colhida pelo abade Hans no jardim de Natal da floresta de Goinge e pediu permissão aos monges para ir levar algumas flores ao arcebispo Absalão.
- Trago-lhe um presente do abade Hans – disse ao entregar as flores ao arcebispo. – São flores que ele havia prometido colher no jardim de Natal da floresta de Goinge.
Vendo as flores nascidas no auge do inverno e ao ouvir as palavras do irmão leigo, o arcebispo empalideceu, como se estivesse vendo um fantasma.
- O abade Hans cumpriu sua palavra – disse após uma pausa. Também cumprirei a minha. E mandou lavrar uma carta de absolvição para o salteador que desde a mocidade vivia na floresta.
Entregou a carta de perdão ao irmão leigo que seguiu para a floresta, à procura da caverna do salteador. Ao chegar, no dia de Natal, o bandido avançou para ele, empunhando uma acha de lenha.
- Não conseguirei acabar com vocês, por mais numerosos que sejam, monges amaldiçoados? Por causa de você a floresta de Goinge não se enfeitou este ano com as galas de Natal!
- Por minha culpa, somente – disse o irmão leigo – e desejo morrer para expia-la. Antes de morrer quero entregar-lhe uma mensagem do abade Hans – e disse ao homem, entregando-lhe a absolvição lavrada pelo arcebispo, que estava perdoado: - De hoje em diante você poderá brincar com seus filhos na palha de Natal, entre os homens de bem, como o abade desejava.
O salteador empalideceu e não conseguiu pronunciar uma palavra sequer.
- O abade Hans cumpriu a palavra – disse a mulher respondendo pelo marido. – O salteador cumprirá a sua.
O salteador, a mulher e os filhos deixaram a caverna, onde o irmão leigo se instalou, passando a viver na floresta, em orações constantes para obter o perdão de sua alma emperdenida.
A floresta de Goinge nunca mais voltou a celebrar o nascimento do Salvador. De todo o seu esplendor nada mais restou além da planta colhida pelo abade Hans.
Deram-lhe o nome de Rosa de Natal e, todos os anos, na época do Natal, suas verdes hastes brotam da terra e suas flores de pétalas brancas abrem suas corolas como se jamais pudessem esquecer que, outrora, haviam florescido no grande Jardim de Natal."