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Arquivo Pessoal |
"A menininha de sete anos não esperava pela meia noite daquela véspera de Natal. Já ganhara os seus presentes e subira para dormir. Não era costume alguém vir dar-lhe um beijo de boa-noite. Não usava mais: além de careta, poderia implicar perigosa dependência afetiva. No térreo, a família reunida estourava champanha e dançava velhas músicas de uma remota Bossa Nova.
De repente, acordou. Apesar do surdo e constante rumor da cidade de dez milhões de habitantes lá embaixo, a 30 andares, ouviu que alguém andava pelo quarto cuidadosamente. A meia-luz que se coava pela janela aberta, entreviu um vulto rechonchudo. Não sentiu medo. Mas os seus olhos estavam perigosamente fixos e arregalados.
- Quem está ai? É você, vovó? - Sim, gordinha, só poderia ser a vovó: todos os demais da família eram esbeltos, viviam em perpétuo regime de emagrecimento.
- Minha menininha...
- Quem é você?
- Não está vendo, minha filha? Sou Papai Noel.
- Não se mexa. Senão, eu grito.
- Não precisa gritar.
- Mãos ao ar. Se abaixar as mãos, eu grito.
- Sim, minha filha. Estou com as mãos no ar. Mas não pretendo fazer-lhe mal. Sempre fui recebido muito bem pelas crianças. Já lhe disse: Sou Papai Noel.
- Papai Noel não existe, meu pai me explicou. Você deve ser algum assaltante aí da favela da ... Quer se fazer de engraçadinho comigo?
- Sou Papai Noel. Dou-lhe a minha palavra de honra.
- Quem entra em casa dos outros sem ser convidados é bandido. E não abaixe as mãos. Senão eu grito.
- Não precisa gritar, minha filha.
- Seu gritar, todo o mundo corre aqui para cima. Meu pais, meus irmãos, meus tios, meus primos. Todos andam armados por causa dos assaltantes como você. Tio Carlos tem até uma Magnun. Os outros tem pistolas e revólveres de 32 e 38, cano curto e cano longo. Você não escapa.
- Não pretendo fugir. Minha filha, você precisa acreditar que sou Papai Noel.
- Vamos ver. Como chegou até aqui?
- Num trenó puxado por rangíferes.
- Você pensa que eu sou boba pra acreditar nisso? o Departamento de Trânsito não daria licença pra você andar nessa coisa? E como subiu até este andar de cobertura? Como você passou pela segurança, com portão eletrificado, porteiro armado e dois Dobermanns?
- Com o meu poder mágico, minha filha...
- Só uma menina idiota poderia acreditar nisso. Você está armado?
- Só de boas intenções.
- Boas intenções? É algum modelo novo de Winchester?
- Minha filha ... Estou cansado. Posso abaixar os braços?
- Se abaixar, eu grito.
- Não grite. Olhe, eu provo que sou Papai Noel. Vou fazer você dormir...
- Não tente isso. Se eu sentir que vou piscar, começo a gritar. Você não escapa, eu já disse.
- Não vou tentar. Mas como posso provar que sou Papai Noel?
- Você tem carteira de identidade? Qual é o seu RG? Você tem CIC?
- Ora minha filha! Papai Noel, no seu mundo maravilhoso...
- Se você você é mesmo Papai Noel, onde estão os presentes pra mim?
- Aí no saco.
- Vou examinar. Mas não se mexa. - A menininha abriu o saco e pôs-se a gritar: - Pega ladrão! Pega ladrão!
Tio Carlos entrou atirando. O visitante caiu varado de por cinco balas.
Que havia no saco?
- Não toquem - ordenou o dr. delegado. - É a prova do furto. Não! Não pode ser! Não está acontecendo!
Estava acontecendo. Eram os velhos brinquedos da menina, esquecidos pelas gavetas, bonecas sem cabeça, carrinhos sem rodas. O ladrão pretendia consertá-los, dá-los a outras crianças? Mas tudo se desvanecia vagarosamente, docemente... - Não está acontecendo. Ninguém está vendo nada - comandou de novo o dr. delegado.
Sumiram os brinquedos e logo também o saco.
O dr. delegado e um perito lançaram-se imediatamente ao exame do corpo do intruso. Constataram que não estava disfarçado: as suas barbas e cabelos brancos eram naturais. Mas mal se teve tempo de verificar que as polpas dos seus dedos não deixavam impressões, pois o cadáver também começou a evaporar-se...
- Não estão vendo nada. Não está acontecendo nada - insistiu o dr. delegado.
- E estas cinco cápsulas? arriscou constrangido tio Carlos, estendendo os cartuchos vazios ao dr. delegado. Ele as apanhou, examinou-as ligeiramente e guardou-as no bolso. - Não existem mais. - E voltando-se para o grupo perplexo: - O que aconteceu, na realidade, não aconteceu. Não falem do que não aconteceu com ninguém. Difundir boatos pode tornar-se um caso de segurança nacional. Estou advertindo.
- Mas nós acabamos de ver ... - insistiu tio Carlos, que desejava a todo custo ter morto um assaltante, cujo cadáver lhe surripiavam diante dos olhos.
- Nós não vimos nada - disse peremptório, o dr. delegado. - Os srs. não acreditam em disco voador, acreditam? Acreditam na paz mundial? Para o bem de todos, não viram nada. E o caso que não houve está encerrado. Tenham um bom Natal.
Todos se calaram. A família instalou radar para detecção de seres acaso vindos do espaço. E no Natal seguinte, pode cantar em segurança "Noite Feliz! Noite Feliz!"
Dessa vez, não houve intrusos. [texto de Mário Donato in página 2, de Cultura, OESP, a.3, nº 185, 25/12/1983]