domingo, 24 de dezembro de 2017

Natal Rupestre

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Natal Rupestre
Ilka Brunhilde Laurito


I
Agachou-se e pariu.

Cortou com o fio dos dentes
o fio da vida
de suas estranhas 
recém-saída.

Agachada, riu-se.

Lambeu com cuidado
a pequenina carne
em sangue e humores
revestida
implantou-lhe na barriga
o caracol d o umbigo.


Fora,
os bisões berravam de pavor
do caçador novo
e faminto,
E um meteoro explodia
uma faísca de luz
no cume
da caverna fria.

Agachou-se e poliu.

Nas mãos sapientes
e instintivas,
as duas pedras
entrelascavam chispas.

Acocorada
sobre o chão de terra,
criou o fogo
de aquecer
a cria.
Calou-se a sede
na fonte pontiaguda
dos mamilos
por onde corri
grossa, nua,
a brancura íntima
do fêmeo corpo escuro.

E urrava baixinho
e engrolava ternamente os chios
modulando grunhidos
de fazer
dormir...


II
Na caverna,
o fogo,
a fome,
a espera.

O grande macho
na guerra
por comida
e peles
O filhote
a prumo
e aos gritos
sobre  o chão
de quedas.

O teto,
espaço aberto.
E o carvão,
traço que o fecha.

A mãe
distrai a cria.
Inventa
a cor e o risco,
narra
o movimento 
do homem
e do irmão bicho.
A mão 
distrai e cria.

A mão,
a mãe,
o filho,
era uma vez,
a escrita.


III
Redondos os seios
no côncavo corpo.
Redondos os montes.
Os olhos, redondos,
um sol, uma lua,
nas grávidas sombras.

Corolas, redondas,
no bojo das flores.
Redondas, sementes.
Redondo seu tronco
de férteis colheitas
nos ocos redondos.

Redondas as pedras
nas ondas dos rios
red.. ondas... red... ondas...
as... ondas... andando...
red... ondas... rod... ando...
rod...ondas... rod... ondas...

Rolou o seixo redondo
no leito seco das mãos:
arco do sol se pondo,
lua rodopiando,
giro oblongo do ovo,
vertigem, voragem, voo.

Olhou a roda nascendo
do pensamento e dos dedos.
Viu o filhote correndo
atrás do veloz brinquedo.
Soube dos aros do  tempo
no eixo do movimento.

E as ondas corriam agora
de suas mãos e de seus olhos.
E os pés calçariam a roda
que acelera haveria a hora
de uma pedra em sua memória.


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