sábado, 6 de abril de 2019

Luz sépia

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"...É sábado de manhã e eu acabei de tomar o café. A vizinha faz barulhos como sempre, a casa precisa de cortinas, pratos limpos e definitivamente não precisa de barulho. Sábado de manhã é o único momento em que eu consigo ver a luz sépia que entra pela janela da sala e eu não quero nada além disso. É sábado e eu posso escutar música sem os fones, e coloco Billie para cantar “Blue Moon”, porque me disseram que hoje vai aparecer no céu a maior lua dos últimos 20 anos. É sábado e eu finalmente tenho tempo para pensar em como seria. Nós dois juntos. Porque me permito a saliência de criar uma vida à distância e vejo você acordando cedo para correr e me deixando na cama, e depois me acordando pra visitar seus pais, e me levando na feirinha daquela rua e para aquele restaurante polonês all you can eat. Me deixará sozinha à noite para escrever enquanto eu já teria alguns amigos na cidade e sairia para dançar. Meu livro acontecendo aos poucos e você fazendo cara de surpreso por eu de fato ter algumas leitoras queridas que consideram alguma coisa nesta literatura menor que é falar de si mesma enquanto você não entende o quanto de material você me dá e o quanto este nosso colchão jogado no chão do quarto parece mais ficcional do que qualquer história inventada. Não seríamos felizes. Eu teria me apaixonado por você de novo (como da primeira vez, dois anos atrás), um homem que não sabe amar, mas que merece um afago por ter tentado, e eu amaldiçoando seu passado, que amaldiçoou a você mesmo no dia em que ela te deixou. E eu voltaria pra cá, e me mudaria para a mesma casa onde estou agora, feliz pelo sépia que entra pela janela da sala, escrevendo sobre os anos que vivemos juntos, e sobre como é estar sozinha e não procurar um novo amor. De vez em quando você sai com seus amigos e com uns tragos a mais contempla a possibilidade de vir aqui e me levar de volta sem lembrar que um ano se passou e que você nunca vai conseguir de fato me amar, apesar de sentir falta do peso que eu fazia em cima de você e do formato dos meus peitos, além da paciência, do amor desesperado e das teclas de computador soando nos dois lados da casa. Te escrevo esta carta para dizer que eu sempre tive certeza que me curaria, porque desde o momento em que eu entrei naquele avião eu sabia que voltaria, eu sabia que ia te deixar, e sabia que havia uma linha que você não cruzaria nunca. Mas te espero, para sentarmos em um bar, civilizadamente, entre nossos milhares de amigos em comum. E aí eu roçaria meu rosto na sua barba, e seríamos amigos, e você conheceria um homem que me ama com a devoção de um filhote, e voltaria para casa questionando todo o amor que poderíamos ter vivido. Mas não viveríamos jamais. Porque as coisas são como devem ser. Simples assim."

[ ... ]  [in Este é um livro sobre amor de Paula Gicovate]



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